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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O teatro é necessário - mas não é para todos

O teatro é necessário - mas não é para todos
Por Ana Ferreira. 


A necessidade não é algo tão objetivo quanto a palavra pretende insinuar. Para sobreviver temos a necessidade de oxigênio, comida e uma temperatura terrestre mediana. Mas a necessidade de sobreviver existe? A que se deve uma existência? Do ponto de vista da natureza, apenas para servir a continuidade do ciclo de existências. Daquele pessoal, à felicidade. Por essa dificílima empreitada, a felicidade, grande parte da humanidade tem brigado há décadas acreditando que doces sonhos são feitos de lágrimas de outros. Uma outra parte, bastante restrita, essa que se envolve com o pensar artístico e é, por isso, privilegiada, sente-se culpada por essa vantagem e passa então a pensar que deve consertar o mundo. Grotowski, em uma palestra no Rio de Janeiro em 1974, já teria dito que ninguém pode mudar a própria vida em busca da felicidade sem que mude a dos outros. Mas também alertou sobre o perigo de se querer transformar o mundo e a impossibilidade de, mesmo em círculos pequenos, modificar a vida como um todo através da arte. “Através da cultura, é verdade, pode-se falar a propósito das modificações do mundo. Através da criação pode-se falar como mudar a vida, as estruturas, a civilização, como tornar o mundo melhor. Mas ‘falar a respeito’ não modifica nada. Lamento”, disse o teatrólogo. Fato é, que o seres humanos encontram a felicidade através de diferentes meios, alguns da religião, outros no contato com os fenômenos naturais, outros na relação com o outro. São formas de entrar em contato com uma essência da vida. Denis Guénoun nos deu a pista sobre de que se trata o teatro: libertar a própria existência para convidar o próximo a libertar a sua. O teatro nos é apresentado então como uma das tentativas de felicidade, como uma forma de tentar o contato com o outro encontrar-se.
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Para Grotowski, a única forma de se relacionar profundamente com outro ser humano é através da verdade. Este é o problema geral da arte: quer-se evitar o ato verdadeiro, substituí-lo por sua imitação perfeita. Mesmo no teatro chamado “de participação” tudo se apresenta banal, a espontaneidade instintiva a que se propõe é extremamente falsa. Foi essa a consciência que começou a surgir em meados do século passado e nos trouxe à exposição do jogo, ato pretendido pelo teatro contemporâneo. Na cena, toda presença é concreta, o ator expõe essa condição e faz dela um instrumento para estabelecer uma relação de sinceridade com o espectador que permita a fruição da ação poética. O representado não é mais a verdade do texto, a verdade do texto teatral é desnudamente poética: a ficção não deve ser servida pelo ator, mas o ator deve, se for o caso, induzir ficções. Se muitas narrativas ainda roçam no imaginário das personagens, não o obedecem mais.
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"Trata-se então de elaborar uma verdade física. Os métodos variam: procura de uma autocolocação de uma interioridade (que, diante do olhar, deve ser conquistada), ou, ao contrário, trabalho da exposição pela exposição, buscando sua eclosão como ostentação no âmbito da verdade. O horizonte é sempre o de uma precisão: do deslocamento, do gesto, do olho, da própria imobilidade. E esta exigência não é representativa, mas apresentativa" (GUÉNOUN, p. 133).
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Portanto a motivação do teatro é a do jogo entre a poesia e a existência. Trata-se de uma arte necessária na medida em que é um meio de busca pela verdade da vida através do contato real com o outro possibilitado pela poética. “O teatro é o jogo deste existir que oferece ao olhar o lançar de um poema. Só o teatro faz isto: só ele lança o poema para diante de nossos olhos, e só ele lança e entrega a integridade de uma existência” (GUÉNOUN, p. 147).
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A questão é que, desde que o teatro decidiu por sua independência do imaginário, perdeu considerável número de público. Denis Guénoun defende que ele se deslocou para as aulas de interpretação, tentativa de se aproximar de uma arte da qual sente distância. Os tantos espectadores potenciais do jogo exposto estariam esperando do ator, que ali liberta sua existência, um convite para em dado momento fazerem o mesmo, para ser parte da ação dramática. Talvez seja essa sua necessidade. Buscar essa troca é, talvez, uma forma de estabelecer uma comunicação mais profunda com aqueles que ali estão e, ainda, de atrair mais pessoas ao teatro. Afinal, querer se agrupar, ser componente de um conjunto, é uma tendência natural da humanidade. Busca-se na ação do outro uma inspiração ou justificativa para a própria. Por mais que soe massacrante, é libertador. Quanto maior a comoção, mais catártico.
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Invoco novamente Grotowski para lembrar que não devemos nos enganar. O que queremos é apenas ser feliz e uma ação teatral verdadeira não garante nada disso. Ela é um meio de tentar, mas não o fim em si. Porém acredito que sua necessidade está exatamente em propor esse caminho. Querer que mais pessoas se integrem, querer espalhar esse bem para o mundo é válido na medida em que novos grupos se unem para tentar um contato com o outro, mais gente tem acesso a essa via de auto-encontro. Está aí a importância de procurar esse espaço que convide o espectador a libertar a própria existência. Mas querer que o teatro tome para si a responsabilidade de ser um remédio para os males da humanidade é querer fazer dele mais uma enganação, mais um produto fácil da cultura de massa que alimente a insaciedade e o vazio do espírito. Se, em alguns séculos passados, o teatro já foi tão popular quanto hoje é o cinema, é porque muitos buscavam nele o puro entretenimento, hoje existente em variedade rápida e fácil. Nem todos estão dispostos a pagar o preço da procura pela felicidade. O teatro, ao menos o teatro de exposição, nunca pertencerá a todos. Porque o teatro não é fácil, como ser feliz também não.

Texto de 2009. 



Bibliografia:
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Guénoun, Denis. O Teatro é Necessário?. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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Palestra proferida por Grotowski em 8 de julho de 1974, no Teatro Nacional de Comédia, Rio de Janeiro. Tradução e transcrição: Yan Michalski. Não publicada.

sábado, 15 de janeiro de 2011

A arte do ator

Além da questão da apoteose e da derrisão, exposta no post anterior, há outro elemento que nos interessa nos estudos de Grotowski, a sua compreensão da arte do ator:
"Paradoxalmente ele interpreta a si mesmo enquanto representante do gênero humano nas condições contemporâneas. Choca-se na sua palpabilidade espiritual e corpórea com um certo modelo humano elementar, com o modelo de um personagem e de uma situação, destilados do drama: é como se literalmente se encarnasse no mito. Não as analogias espirituais com o protagonista criado, não as semelhanças dos comportamentos, próprias de um homem fictício em circunstâncias fictícias. Desfruta o hiato entre  verdade geral do mito e a verdade literal do próprio organismo: espiritual e físico. Oferece o mito encarnado com todas as consequências, não sempre agradáveis, de tal encarnação.
Se - suponhamos - faz um comandante que morre em batalha, não procura reproduzir em si a imagem de um verdadeiro comandante que realmente está em agonia no tumulto do combate; não procura o que aquele pode sentir e como se comporta, para depois viver e reproduzir subjetivamente no palco de modo crível, orgânico este conhecimento de algum modo objetivo sobre os comandante agonizantes. Ao contrário, no próprio fato de que alguém se imagine como um comandante agonizante, poderá encontrar-se a própria verdade, o que pessoal, íntimo, subjetivamente deformado. E então, por exemplo, representará o próprio sonho de uma morte patética; a nostalgia de uma manifestação heróica; a humana fraqueza de sublimar-se às custas dos outros, desvelará as próprias fontes, uma após a outra, como se desnudasse o tecido vivo. Não recuará devendo violar a própria intimidade, os motivos pelos quais se envergonha. Ao contrário, o fará até o fim. É como se oferecesse - literalmente - a verdade do seu organismo, das experiências, dos motivos recônditos, como se oferecesse aqui, agora, diante dos olhos dos espectadores, em não em uma situação imaginada, no campo de batalha. E assim responderá à pergunta: como ser um comandante, sem ser um comandante? Como morrer em batalha, sem combater, nem morrer? Cumprirá o ato de desnudar-se dos próprios conteúdos secretos, de sacrificar as falsidades superiores sobre o altar dos valores" (p. 92-93).
Artigo A arte do Ator, de  Ludwik Flaszen. In O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski. São Paulo: Perspectiva/Edições SESC SP, 2010)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Nosso treinamento de ator

Antes de iniciar o processo criativo da nossa próxima peça - É Uma Vez e Para Sempre - resolvemos nos trancar na sala de ensaio para nos exercitar, para trabalhar e esclarecer questões com relação a arte do ator que vinham nos perturbando há algum tempo e que queríamos que estivessem mais fundamentadas e bem resolvidas na peça que desenvolveremos. Passamos por práticas desenvolvidas pelo LUME TEATRO, treinamentos de AIKIDÔ e trabalho com o clown, trazidas por nossos colaboradores: Kysy Fischer, Larissa Lima e Heidy Mayumi.
Estamos nesta empreitada há apenas dois meses, mas alguns caminhos muito interessantes começam a ser apontados.
Abaixo, Renato Sbardelotto, ator integrante do projeto, fala sobre nossos anseios e nossas primeiras conclusões.

"Em nossos “treinamentos” buscamos novos caminhos para um dos grandes dilemas da arte da representação: a repetição. Juntos, em todas as tardes possíveis durante três a quatro horas (cerca de 15 horas por semana), trocamos idéias e práticas a respeito do corpo do ator, do nosso corpo, desse corpo que se coloca como ator quando chamado a assumir uma profissão. Sendo esta uma escolha maravilhosa e ao mesmo tempo muito nebulosa (amedrontadora), por estreitar limites às vezes tão delineados na sociedade entre o que se define por “arte” e o que se coloca como “vida”. Acho que somos capazes de entender certas coisas, de nos entender e, conseqüentemente, de entender o outro, o humano, por caminhos e com sentidos diversos que só através da “arte de ator”, ou da “arte do performer” - aquele que atua com a forma de seu próprio corpo -, pode-se entender. Entendendo que o corpo também é texto, meio e informação nele mesmo posso dizer que está incutida na arte do ator a leitura do corpo e o trabalho sobre a arqueologia do vocabulário do corpo.

Assim como a leitura de livros, textos ou qualquer enunciado escrito/ouvido nos alimenta de vocabulário para se expressar, a técnica que seguimos na ACRUEL parece se enveredar pelo mesmo caminho, pelo seguimento “leitura – vocabulário – expressão”. A exaustão corporal no treinamento de ator proporciona ações no corpo às quais ele não poderia prever, ou pensar em fazer, justamente por ter de pensar em muitas coisas ao mesmo tempo, em um espaço de tempo muito curto, muito rápido. É como se esse corpo-carne boicotasse o corpo-razão, que cotidianamente precisaria de mais tempo para processar informações, provocando linhas de encontro em direção ao que chamamos de corpo-mente. Determinados músculos ativados durante a realização do treinamento carregam memórias que esse corpo não encontra em estado consciente. O toque, ou a percepção da existência desse pedaço do corpo carregado, abre o corpo para um entender maior de si mesmo e, como conseqüência, um aumento de vocabulário consciente para o ato de representação.

A partir da leitura de textos sobre o trabalho de Jerzy Grotowski em seu Teatro Laboratório, nós, integrantes da ACRUEL, nos aproximamos de proposições e de termos aos quais tomamos para nosso próprio vocabulário de trabalho. Dentro desses termos são dois os que nos saltam ao olhar: espontaneidade e precisão; sendo estes provocadores do que denominamos de “verdade cênica”. Por que num dia a cena foi ótima e no outro não foi? Como repetir a mesma seqüencia de ações com potências semelhantes a cada dia de espetáculo? Como interligar treinamento e processo criativo? Como trabalhar emoções num treinamento aparentemente tão rígido? Como pensar a subjetividade de uma criação de cena e personagem em exercícios aparentemente tão objetivos?

O trabalho do ator sobre si mesmo parece ser o caminho ao qual seguimos atualmente, antes da inserção do texto e da criação de cena e personagens. Esse trabalho viabiliza o conhecimento e exploração de potenciais criativos na práxis diária do ator enquanto homem do mundo e enquanto homem no mundo, em relação direta com o ambiente: sala de ensaio, movimento da rua fora da sala, presença dos colegas em trabalho, noção do ambiente por inteiro - incluso ele, o ator. Em nossos encontros trabalhamos com fatores como: desenvolvimento muscular, precisão física, atenção, ritmo, respiração como condutora de energia, percepção da inteireza do corpo, mudança de foco de atenção, direcionamento de atenção e energia, tensão muscular, tracionamento muscular, relaxamento muscular, oposição muscular, enraizamento, controle de peso, noção do centro de gravidade, tridimensionalidade do corpo no espaço e troca de informação entre participantes. Esses fatores nos conduzem na exploração de exercícios derivados das praticas de colaboradores do grupo.

A repetição embebida de verdade apareceu em nossas discussões desde o início do projeto. Por colocar em jogo materiais/experiências de trabalhos anteriores adiantamos esse questionamento no desejo de criar um espetáculo que seja encontro possível para diferentes públicos; e ao mesmo tempo particular em suas escolhas.

Na atual fase do trabalho pudemos começar a responder nossos próprios questionamentos. Percebemos que a transição do treinamento físico ao processo criativo é mais subjetiva do que pensávamos. O corpo acostumado aos treinamentos diários e ao contato de determinados estados de energia passa a encontrar esses estados em um tempo menor e mantê-los ativos com mais sabedoria. Assim como experiências cotidianas grudam na pelememória do homem e o acompanha, a práxis assumida pelo grupo em fase de treinamento, inevitavelmente, se faz presente no corpo pós-treinamento. E é esse mesmo corpo que entrará
em processo criativo".

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