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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O teatro é necessário - mas não é para todos

O teatro é necessário - mas não é para todos
Por Ana Ferreira. 


A necessidade não é algo tão objetivo quanto a palavra pretende insinuar. Para sobreviver temos a necessidade de oxigênio, comida e uma temperatura terrestre mediana. Mas a necessidade de sobreviver existe? A que se deve uma existência? Do ponto de vista da natureza, apenas para servir a continuidade do ciclo de existências. Daquele pessoal, à felicidade. Por essa dificílima empreitada, a felicidade, grande parte da humanidade tem brigado há décadas acreditando que doces sonhos são feitos de lágrimas de outros. Uma outra parte, bastante restrita, essa que se envolve com o pensar artístico e é, por isso, privilegiada, sente-se culpada por essa vantagem e passa então a pensar que deve consertar o mundo. Grotowski, em uma palestra no Rio de Janeiro em 1974, já teria dito que ninguém pode mudar a própria vida em busca da felicidade sem que mude a dos outros. Mas também alertou sobre o perigo de se querer transformar o mundo e a impossibilidade de, mesmo em círculos pequenos, modificar a vida como um todo através da arte. “Através da cultura, é verdade, pode-se falar a propósito das modificações do mundo. Através da criação pode-se falar como mudar a vida, as estruturas, a civilização, como tornar o mundo melhor. Mas ‘falar a respeito’ não modifica nada. Lamento”, disse o teatrólogo. Fato é, que o seres humanos encontram a felicidade através de diferentes meios, alguns da religião, outros no contato com os fenômenos naturais, outros na relação com o outro. São formas de entrar em contato com uma essência da vida. Denis Guénoun nos deu a pista sobre de que se trata o teatro: libertar a própria existência para convidar o próximo a libertar a sua. O teatro nos é apresentado então como uma das tentativas de felicidade, como uma forma de tentar o contato com o outro encontrar-se.
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Para Grotowski, a única forma de se relacionar profundamente com outro ser humano é através da verdade. Este é o problema geral da arte: quer-se evitar o ato verdadeiro, substituí-lo por sua imitação perfeita. Mesmo no teatro chamado “de participação” tudo se apresenta banal, a espontaneidade instintiva a que se propõe é extremamente falsa. Foi essa a consciência que começou a surgir em meados do século passado e nos trouxe à exposição do jogo, ato pretendido pelo teatro contemporâneo. Na cena, toda presença é concreta, o ator expõe essa condição e faz dela um instrumento para estabelecer uma relação de sinceridade com o espectador que permita a fruição da ação poética. O representado não é mais a verdade do texto, a verdade do texto teatral é desnudamente poética: a ficção não deve ser servida pelo ator, mas o ator deve, se for o caso, induzir ficções. Se muitas narrativas ainda roçam no imaginário das personagens, não o obedecem mais.
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"Trata-se então de elaborar uma verdade física. Os métodos variam: procura de uma autocolocação de uma interioridade (que, diante do olhar, deve ser conquistada), ou, ao contrário, trabalho da exposição pela exposição, buscando sua eclosão como ostentação no âmbito da verdade. O horizonte é sempre o de uma precisão: do deslocamento, do gesto, do olho, da própria imobilidade. E esta exigência não é representativa, mas apresentativa" (GUÉNOUN, p. 133).
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Portanto a motivação do teatro é a do jogo entre a poesia e a existência. Trata-se de uma arte necessária na medida em que é um meio de busca pela verdade da vida através do contato real com o outro possibilitado pela poética. “O teatro é o jogo deste existir que oferece ao olhar o lançar de um poema. Só o teatro faz isto: só ele lança o poema para diante de nossos olhos, e só ele lança e entrega a integridade de uma existência” (GUÉNOUN, p. 147).
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A questão é que, desde que o teatro decidiu por sua independência do imaginário, perdeu considerável número de público. Denis Guénoun defende que ele se deslocou para as aulas de interpretação, tentativa de se aproximar de uma arte da qual sente distância. Os tantos espectadores potenciais do jogo exposto estariam esperando do ator, que ali liberta sua existência, um convite para em dado momento fazerem o mesmo, para ser parte da ação dramática. Talvez seja essa sua necessidade. Buscar essa troca é, talvez, uma forma de estabelecer uma comunicação mais profunda com aqueles que ali estão e, ainda, de atrair mais pessoas ao teatro. Afinal, querer se agrupar, ser componente de um conjunto, é uma tendência natural da humanidade. Busca-se na ação do outro uma inspiração ou justificativa para a própria. Por mais que soe massacrante, é libertador. Quanto maior a comoção, mais catártico.
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Invoco novamente Grotowski para lembrar que não devemos nos enganar. O que queremos é apenas ser feliz e uma ação teatral verdadeira não garante nada disso. Ela é um meio de tentar, mas não o fim em si. Porém acredito que sua necessidade está exatamente em propor esse caminho. Querer que mais pessoas se integrem, querer espalhar esse bem para o mundo é válido na medida em que novos grupos se unem para tentar um contato com o outro, mais gente tem acesso a essa via de auto-encontro. Está aí a importância de procurar esse espaço que convide o espectador a libertar a própria existência. Mas querer que o teatro tome para si a responsabilidade de ser um remédio para os males da humanidade é querer fazer dele mais uma enganação, mais um produto fácil da cultura de massa que alimente a insaciedade e o vazio do espírito. Se, em alguns séculos passados, o teatro já foi tão popular quanto hoje é o cinema, é porque muitos buscavam nele o puro entretenimento, hoje existente em variedade rápida e fácil. Nem todos estão dispostos a pagar o preço da procura pela felicidade. O teatro, ao menos o teatro de exposição, nunca pertencerá a todos. Porque o teatro não é fácil, como ser feliz também não.

Texto de 2009. 



Bibliografia:
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Guénoun, Denis. O Teatro é Necessário?. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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Palestra proferida por Grotowski em 8 de julho de 1974, no Teatro Nacional de Comédia, Rio de Janeiro. Tradução e transcrição: Yan Michalski. Não publicada.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Mutilação e suicídio

Criada pelo dinamarquês Hans Christian Andersen, em 1837, A Pequena Sereia é um relato pra lá de brutal.
1. NAVALHA NA CARNE
No original, a Bruxa do Mar corta a língua de Ariel, que perde a voz. Além disso, a sereia tem a cauda rasgada em duas para virar mulher e conquistar o coração do príncipe. Mas, a cada passo, as pernas sangram e doem.
2. CABEÇA FEITA
Na insistência para que Ariel voltasse a ser sereia, suas irmãs chegam a arrancar os cabelos - literalmente! O objetivo era oferecer as madeixas para que a bruxa do mar rompesse o encanto.
3. FIM DA LINHA
Em troca dos cabelos, a bruxa dá uma faca para Ariel matar o príncipe - que a trocara por outra - e voltar a ser sereia. Traída e desenganada, Ariel se mata pulando de um abismo no mar gelado.

Mãe má!

Inveja, tortura e sugestão de canibalismo roubam a cena dos anões nas versões mais hardcore de Branca de Neve.
1. ESPELHO MAU
Na primeira versão dos Grimm, de 1810, é a mãe, e não a madrasta, que pira no espelho como sendo a mais bela do reino. Invejosa por perder o posto, planeja dar um sumiço na filhinha de apenas 7 anos.
2. DANÇANDO EM BRASAS
Após ter o plano frustrado, a rainha é condenada, no meio da festa de casamento de Branca com o príncipe. Como pena, a ex-poderosa tem que dançar até a morte calçando sapatos de ferro em brasa!
MUNDO CANIBAL
A rainha manda um caçador matar Branca de Neve na floresta, trazendo o fígado e um pulmão como prova do serviço. Ele engana a rainha com carne de javali, que a mãe come achando ser da filha.

Gata Barraqueira

Ao contrário da donzela boazinha que conhecemos, nas versões mais antigas, a Cinderela é quem começa a pancadaria!
1. GOLPE DO BAÚ
Na versão de Giambattista Basile, chamada A Gata Borralheira, a heroína une forças com a governanta para matar a madrasta. Um dia, quando a megera pega roupas num baú, a moça lhe fecha a tampa na cabeça.
2. NA PONTA DOS PÉS
Os irmãos Grimm botam mais sangue no miolo da história. Quando o príncipe visita as casas para identificar o pé de sua amada, as irmãs malvadas de Cinderela se mutilam para tentar calçar o sapatinho, cortando dedos e calcanhares.
3. ORA, POMBOS
Na versão dos Grimm, a madrasta também não é morta por Cinderela. A malvada bate as botas com pombos comendo seus olhos e os das filhas.

Estupro e adultério

Sexo com pessoa em coma e feitiçaria são o tempero de Bela Adormecida, história que tem até uma versão feita no Brasil.
À moda italiana
Giambattista Basile apimentou a história no século 17.
1. FARPA MALDITA
Ao mexer num tear, uma farpa entra sob a unha de Tália, provocando sono imediato - maldição prevista desde sua infância. Desconsolado, o pai abandona a casa, largando a filha adormecida sozinha.
2. NOIVA CADÁVER
Numa caçada, o rei, que já era casado, se encanta por Tália e, antes de partir, transa com a moça apagada! Ela ainda engravida de gêmeos. Um dia, ao tentar mamar, um deles chupa o dedo da mãe e retira a farpa, despertando-a.
3. AMADA AMANTE
Um ano após o encontro, o rei volta à floresta, encontra Tália acordada e passa a esticar as caçadas para manter a vida dupla. A esposa desconfia e põe um espião na cola do rei.
Bela do Brasil
A versão brasuca também sangra. O escritor brasileiro Sílvio Romero publicou, em 1885, em Contos Populares do Brasil, a história de um rei que, numa caçada pela floresta, se apaixona pela camponesa Madalena Sinhá. Em seguida, o rei constitui uma segunda família no campo, mas é delatado por um servo da rainha. No final, a amante e a rainha saem na mão até que Madalena mata a rival, com ajuda do rei. E o servo dedo-duro acaba degolado.
À moda francesa
Nas mãos de Charles Perrault, o final é violento.
1. GUARDA NA DESPENSA
O cozinheiro esconde as crianças e abre o jogo com Bela - que a rainha também estava a fim de jantar. Ao ouvir o choro das crianças, a rainha descobre o engodo e resolve cozinhar todo mundo.
2. BANQUETE DE GENTE
Furiosa com o filho por assumir Bela como rainha, a ogra ordena ao cozinheiro que faça para ela um rango com a carne do neto e da neta. O criado, porém, serve carne de carneiro e de cabrito para enganá-la.
3. CALDEIRÃO ANIMAL
O caldeirão que vai ferver geral é recheado com sapos, víboras, enguias e cobras. No último instante, porém, o rei aparece e a ogra, amedrontada, se joga de cabeça, sendo devorada pelas feras.
4. QUE OGRA DE SOGRA
Agora a vilã é a mãe do rei. A sogra de Bela - que não tem nome nesta versão - é uma ogra, faminta por crianças! Não à toa, o rei não conta nada à megera sobre seus netinhos.

Vermelho cor de sangue

A tonalidade mais chamativa na roupa da doce Chapeuzinho combina com uma história cheia de violência, canibalismo e insinuações sensuais.
ERA UMA VEZ...
A maioria dos contos de fadas, como Chapeuzinho Vermelho, surgiu por volta da Idade Média, em rodas de camponeses na Europa, onde eram narrados para toda a família. "A fome e a mortalidade infantil serviam de inspiração", diz a especialista em histórias infantis Marina Warner, da Universidade de Essex, na Inglaterra.
FINAL FELIZ
Ao fim da versão francesa, Chapeuzinho, sentindo-se ameaçada, pede para sair e fazer suas necessidades fora da casa. O lobo, nojentão, insiste para que ela faça xixi na cama mesmo - urg! -, mas acaba deixando a menina sair. Esperta, Chapeuzinho aproveita o vacilo do vilão e escapa.
FINAL SANGRENTO
O francês Charles Perrault foi o primeiro a pôr muitos contos de fadas no papel, no século 17. Ele tornou o final da história mais sangrento - com o lobo jantando a mocinha - e introduziu a famosa moral da história, dizendo que "crianças não devem falar com estranhos para não virar comida de lobo".
FINAL AMENIZADO
No século 19, os irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm - famosos compiladores de contos que até então só eram transmitidos oralmente -, inventaram a figura do caçador. No fim da história, ele aparece e salva a pele de Chapeuzinho e da vovó, abrindo a barriga do lobo com um tesourão.
1. COMIDA DE VÓ
Numa versão francesa da história, após interrogar Chapeuzinho na floresta e pegar um atalho para a casa da vovó, o lobo mata e esquarteja a velhinha sem dó. A coisa piora quando o vilão, já fingindo ser a vovó, oferece a carne e o sangue da vítima, como se fosse vinho, para matar a fome da netinha - que come e bebe com gosto!
2. TIRA, TIRA...
Após encher o bucho e praticar canibalismo sem saber, Chapeuzinho ainda tira a roupa e joga no fogo, a pedido do lobão! O clima, porém, não é nada infantil, com a garota perguntando o que fazer com a roupa a cada peça tirada. O lobo só tinha uma resposta: "Jogue no fogo, minha criança. Você não vai mais precisar disso...".
3. SEDUÇÃO INFANTIL
Ao se deitar ao lado do lobo, já totalmente nua, Chapeuzinho começa a reparar no físico do vilão, como se desconfiasse de algo. Admirada, a menina começa a exclamar: "como você é peluda, vovó", "que ombros largos você tem" e "que bocão você tem", entre outros elogios à anatomia do bichão...
*Fontes: Conte de la mère-grand (coletado pelo folclorista Achille Millien por volta de 1870); Pentameron, de Giambattista Basile; Tales of Mother Goose, de Charles Perrault; Childrens and Household Tales, dos irmãos Grimm; Da Fera à Loira, de Marina Warner; A Princesa que Dormia (coletânea publicada pela editora Paraula) .

domingo, 13 de junho de 2010

Artigo é publicado sobre o processo de criação de Espaço Outro

Um artigo sobre o processo de criação da peça Espaço Outro da ACRUEL Companhia foi publicado na revista eletrônica Questão de Crítica. O texto, escrito pela integrante Ana Ferreira, relata de forma informal a pesquisa feita. Está disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2010/06/espaco-outro/ .

Segue o mesmo abaixo:

Espaço Outro

Artigo sobre o processo de criação da peça Espaço Outro, da Cia ACRUEL, de Curitiba

Foto: Rosano Mauro Jr

Espaço Outro é uma peça de gabinete, processo estranho à maioria dos criadores contemporâneos. A observação do espaço urbano, mais especificamente do centro da cidade, intercalou algumas fases da criação. Os ensaios tomaram pouquíssimo tempo. Foi à base de café que eu, Emanuelle Sotoski e Rubia Romani construímos esta obra.
O primeiro café deste processo foi tomado no Café Fingen, ao lado do Teatro Guaíra de Curitiba, onde o grupo Couve-Flor fazia Infiltrações. Tratava-se de uma intervenção na qual o público recebia por escrito um roteiro de ações executadas pelos artistas em qualquer lugar visível a partir das cadeiras do Café, do balcão à Praça Santos Andrade. Um homem procurava emprego em um jornal do outro lado da rua enquanto uma mulher vestida de verde e com os cabelos molhados pedia sorvete de pistache no balcão; e nós sabíamos antecipadamente que tudo isso aconteceria por causa daquele objeto vidente que havia nos sido entregue. O café trivial tornou-se mágico, todo o ambiente real tomou proporções ficcionais: as pessoas atravessando a faixa de pedestres com o intenso movimento das seis e meia era uma linda coreografia de balé. Junto comigo, estava a Manu, também integrante da ACRUEL.
Na mesma semana tivemos uma reunião sobre os próximos passos da companhia e eu falei sobre o quanto Infiltrações havia mexido comigo, o quanto eu passei a acreditar na necessidade deste tipo de arte. Qual necessidade? Qual tipo de arte? São perguntas que precisávamos nos fazer antes de apenas reproduzir a intervenção do Couve-Flor. Partimos para dois meses de discussão regada de O Teatro é necessário? e Carta aberta, ambos de Denis Guénoun, e As heterotopias de Michel Foucault. Havia questões nestes textos que nos eram centrais. No primeiro, Guénoun discute a falta de público nas peças teatrais em paralelo ao excesso de pessoas nos cursos de teatro. Para o autor, o indivíduo contemporâneo só pode se sentir parte de uma obra, estar representado nela, se ele realmente atuar na mesma. O grande golpe do teatro em nossa época só poderia ser tornar o público ativo. Carta aberta é um texto sobre, para, e, principalmente, pelo teatro. Um novo, não mais feito para poucos. Uma possibilidade nova de paixão para outros apaixonados da sociedade. Guénoun é contra o desejo comum aos artistas da adequação do povo ao pensamento artístico contemporâneo. Para o autor, a população não deve correr para alcançar a arte, o artista é que deve sair do seu meio restrito de convivência e endereçar sua obra à população. “Você quer os fanáticos por futebol, é preciso ir ao estádio sentir subir o grito quando a jogada é bonita. Deixe o teu quarto, tua vida interior. É preciso levá-la para dançar. Faze-la valsar” (1).
E o público do futebol realmente nos interessava, talvez não de forma objetiva. Desejávamos combinar a identificação individual com a catarse coletiva, característica extremamente forte nos enormes estádios (claro que a estrutura que podíamos oferecer tinha menores proporções), e através disso atrair outros tipos de espectadores, aqueles mais ativos. O “ano novo” nos pareceu uma metáfora perfeita para esta combinação, pois nele estamos decididos a agir em nossas vidas e por isso estabelecemos representações/identificações do que somos e queremos. Ao mesmo tempo, comemoramos a concepção destas idéias em conjunto com outras pessoas, compartilhando um sentimento de renovação. Esta festividade tornou-se uma referência para o ambiente que queríamos criar, e trouxe consigo um tema: iniciativa para a satisfação própria. O objetivo da nossa obra passou a ser buscar esta situação e sentimento, esta era sua necessidade.
Foucault entra nesta história para responder a segunda pergunta, aquela sobre o tipo de arte. O autor nos ajudou a orientar nossa estratégia de ação. Ele acredita que a história das sociedades contemporâneas é contada pelo espaço e pelas relações que surgem dele ou com ele. Os “outros espaços” ou “espaços outros”, são os mais interessantes ao estudioso, pois tem valores simbólicos que falam fortemente sobre a cultura dos povos. Dentre estes, os mais importantes são as “heterotopias”, lugares reais e concretos que assumem significados de outros lugares, formando assim um contra-espaço. Há diversas expressões desta classificação. O teatro, em si, já é uma heterotopia por natureza, pois cria um espaço ilusório que representa outros reais. Entre seus exemplos, Foucault menciona um que nos encantou muito:
“Devemos ter em conta que, no Oriente, o jardim era uma impressionante criação de tradições milenares, e que assumia significados profundos e sobrepostos. Na tradição persa, o jardim era um espaço sagrado que reiterava nos seus quatro cantos os quatro cantos do mundo, com um espaço supra-sagrado no centro, um umbigo do mundo (ocupado pela fonte de água). Toda a vegetação deveria encontrar-se ali reunida, formando como que um microcosmo. (…) O jardim é a mais pequena parcela do mundo e é também a totalidade do mundo; tem sido uma espécie de heterotopia feliz e universalizante desde os princípios da antiguidade.” (2)


Foto: Rosano Mauo Jr

Este foi um dos momentos em que demos uma pausa nos nossos cafés e fomos para a rua observar. Fizemos alguns exercícios dentre os quais o mais produtivo foi criar histórias improvisadas sobre as pessoas que passavam nas ruas. Nesta experiência, encontramos nas praças públicas nosso Jardim Persa, um espaço real com potência para simbolizar todo o movimento urbano. Isto porque este lugar combina ociosidade com intensa transitoriedade, o que lhe possibilita ter frações das mais diversas atividades da cidade.
A forma desejada para nossa obra possuía fortes inspirações em Infiltrações, mas aqui ambas se separaram. O trabalho do Couve-Flor objetivava intensificar o olhar do público sobre a rua e por isso o grupo mudava seu roteiro a cada cidade, criando novas estratégias de acordo com suas rotinas. Mas nós desejávamos implantar um jardim, uma representação geral do todo artificialmente fixada naquele espaço. Nós queríamos, mais do que intervir, fazer uma peça de teatro.
Fechamos nossa estrutura espacial: uma grande caixa transparente no centro da praça pública que seria nosso artefato mágico, aquele que possibilita entrar em um ‘espaço outro’ sem sair deste espaço real da praça. Chegamos, então, ao momento de construir o roteiro e, para isso, fizemos nossos cafezinhos e retornamos ao nosso gabinete. Voltamos-nos ao objetivo de causar a reflexão sobre o que somos e o que queremos e, a partir dela, uma comoção compartilhada. Fizemos-nos inúmeras perguntas sobre ações e escolhas na vida, muito bem traduzidas pela crítica Luciana Romagnolli como Quando a gente é feliz?. E dentro deste tema que envolve fortemente as tomadas de decisões, organizamos a estrutura da dramaturgia com o que chamamos de “estratégia do re”. Refazer, reciclar, re-significar, regressão. Baseando-nos nas observações e exercícios nas praças, listamos ações com forte caráter de iniciativa no sentido de uma satisfação pessoal. Com elas criamos um roteiro base. Este deu origem a outros cinco, todos com as mesmas ações, mas variando em atitudes e maneiras de se relacionar com as situações. Cada um dos cinco possui uma forma dominante de relacionamento, e é representado por uma cor. Deixamos a critério do público se cada roteiro é uma outra forma de ver algo que aconteceu (re-significar), possibilidade de agir na mesma ocasião (refazer) ou uma continuação de uma mesma história onde há uma nova chance aproveitada de outra maneira (reciclar). Apenas um ‘re’ dominamos exclusivamente: a regressão. As ações começam longe da caixa e a cada novo roteiro vão se aproximando, contagem regressiva para o momento em que chegam ao público e devolvem a ele a responsabilidade de agir e escolher em suas próprias vidas, de se movimentar no espaço real.
Voltamos para a praça e testamos todo o roteiro. A penúltima fase foi a escrita do texto que é narrado em off na grande caixa, orientando o olhar do público sobre as cenas que se passam espalhadas pelo espaço urbano. A linguagem dramatúrgica de cada um dos cinco roteiros foi pensada para corresponder às suas cores (formas de relação). Para os dois primeiros, cada uma das criadoras escreveu solitariamente um texto, depois nos reunimos e montamos um “Frankenstein” com partes do corpo de todos. Os três últimos foram pensados em conjunto, algo que consideramos importante devido à gradação da abstração que acontece no decorrer da contagem regressiva.
Partimos para a última e menos complexa parte do processo criativo: gravar e produzir o áudio e ensaiar com os atores. Diferente da maioria das peças, esta parte foi mais fácil porque Espaço Outro não exige uma interpretação sofisticada por parte dos atores. O que há de mais importante nesta obra é a sincronia do que está sendo narrado com o que acontece no espaço real.
Focamo-nos, durante todo o processo, em transformar o estudo teórico em resultado concreto – na medida em que se pode ser concreto ao fazer arte. Acredito que, em decorrência desta preocupação, tivemos retornos do público bastante significativos. Finalizamos recentemente a primeira temporada, que se deu em Curitiba. Agora, esperamos poder fazer esta experiência com públicos de outras cidades.
Notas:
(1)Tradução e adaptação de Fernando Kinas. Não publicado.
(2)Conferência proferida por Michel Foucault no Cercle d’Études Architecturales, em 14 de Março de 1967. Texto traduzido por Pedro Moura. Disponível em: http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt.html .
Site da Cia ACRUEL: http://www.acruel.com.br/


Foto: Rosano Mauro Jr

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Referências

Como dissemos ontem, hoje era um dia separado para ver referências. Vimos vídeos muitos legais que serão muito últeis na construção das cenas. Além disso, discutimos muito sobre a sonoplastia, que tem papel bem importante no espetáculo.
Entre outras coisas, hoje voltamos ao filme "500 dias com ela", que foi uma referência desde o início do processo por brincar com representações do estado interno. Não vou estragar pra quem não assistiu (mesmo assim, fica a dica), mas vou colocar aqui um vídeo extra do filme que, como a própria atriz apresenta no início, pode ser assistido tanto por quem já viu o filme quanto por quem ainda não. Este vídeo é uma referência tão forte para nós quanto o próprio filme.



A partir de semana que vem, começamos as investidas na escrita do texto. Na segunda, falamos sobre isso.
Bom final de semana a todos!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Perrault e Capinha Vermelha


O lobo consegue entrar na casa da avó fingindo ser Capinha Vermelha e engole imediatamente a velhinha. Na história de Perrault o lobo não se disfarça de avó. Simplesmente deita-se na cama dela. Quando Capinha chega, o lobo pede-lhe que se deite com ele. Capinha Vermelha tira a roupa e entra na cama, quando então se espanta com a aparência desnuda da avó, e exclama: "Vovó, que braços enormes você tem!", ao que o lobo responde: - "São para te abraçar melhor!" - Capinha então diz: - Vovó, que pernas grandes você tem!" - e recebe como resposta: - "São para correr melhor!" - Seguem-se a este dois diálogos, (que não ocorrem na versão dos Irmãos Grimm), perguntas bem conhecidas sobre os olhos, orelhas e dentes grandes da Avó".

Quando Perrault publicou sua coleção de contos de fadas em 1697, Capinha Vermelha já era uma história antiga, com elementos que remontavam a tempos atrás. Existe o mito de Cronos onde ele engole os filhos que de modo miraculosoconseguem sair de seu estômago, e no lugar deles colocam pedras pesadas. Há uma história Latina, de 1023 (de Egberto de Lièges, chamada Fecunda ratis), na qual uma menininha é descoberta na companhia dos lobos; a menina usa uma manta vermelha, de grande importância para ela, e os estudiosos dizem que esta manta era um capuz vermelho. Aqui, então, seis séculos ou mais antes da estória de Perrault, encontramos alguns elementos básicos de Capinha Vermelha: uma menina com um capuz vermelho, a companhia dos lobos, uma criança sendo devorada viva que retorna incólume, e uma pedra colocada no lugar da criança.

Há outras versões de Capinha Vermelha, mas não sabemos qual delas influenciou Perrault na sua narrativa. Em algumas o lobo faz Capinha Vermelha comer a carne da avó e beber seu sangue, apesar de vozes advertirem-na do contrário.
(p. 204)

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O Sublime segundo Kant

"Se, porém, denominamos algo não somente grande, mas simplesmente, absolutamente e em todos os sentidos (acima de toda a comparação) grande, isto é, sublime, então se tem a imediata perspiciência que não permitimos procurar para o mesmo nenhum padrão de medida que adequado a fora dele, mas simplesmente nele. Trata-se de uma grandeza que é igual simplesmente a si mesma. [...] A definição acima também pode ser expressa assim: sublime é aquilo em comparação com o qual tudo o mais é pequeno".

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

O Grotesco segundo Bakhtin

"Quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor. Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. [...] o baixo é sempre o começo".

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.

domingo, 27 de setembro de 2009

Foto de Dogville
Na versão dos irmãos Grimm, Branca de Neve tem apenas sete anos. Príncipes pedófilos era normais... O prícipe carrega seu corpo morto com ele para o palácio. Algum tipo de necrofilia? Depois de algum tempo, um de seus servos, cançado de ter que carregar o caixão de um lado para o outro, resolve descontar suas frustrações dando uma baita de uma surra na Branca de Neve. Um dos golpes no estômago faz com que ela vomite a maçã e volte a vida.




sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A Vingança

Em "A Guardadora de Ganços" o Rei inquere àquela que se passou pela princesa qual seria o castigo ideal para alguém que fizesse tal coisa. A dama, sem perceber ter sido descoberta, responde: "Ela mereceria ser colocada nua dentro de um barril forrado de ferros pontiagudos, e dois cavalos brancos deveriam arrastar este barril pela cidade, até que ela morresse". Rei então aplicou tal castigo a ela.

O Caçador enche de pedras a barriga do Lobo de "Chapeuzinho Vermelho" que cai no rio e, por causa do peso, morre afogado.

A bruxa de "João e Maria" , que desejava cozinhar as crianças no forno, é empurrada para dentro dele e queima até morrer.

Em "Irmão e Irmã" a bruxa é lançada ao fogo para morrer.

A Rainha de "Branca de Neve" estava saindo do casamento da enteada quando acabou tropeçando num par de botas de ferro que estavam aquecidas em brasa. As botas fixaram-se na rainha e obrigaram-na a dançar, e ela dançou e dançou, até finalmente, cair morta.

As irmãs de Cinderella tem os olhos bicados por passarinhos até cegarem.

O Barba Azul é assassinado com espadas pelos irmãos de sua esposa.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Trecho de O Gato de Botas

Meu querido ogro, tenho ouvido por aí umas histórias a teu respeito. Dizei-me lá: é certo que te podes transformar no que quiseres?

- Certíssimo – respondeu o ogro, e transformou-se num leão.

- Isso não vale nada – disse o gatinho. – Qualquer um pode inchar e aparecer maior do que realmente é. Toda a arte está em se tornar menor. Poderias, por exemplo, transformar-te em rato?

- É fácil – respondeu o ogro, e transformou-se num rato.

O gatinho deitou-lhe logo as unhas, comeu-o e desceu logo a abrir a porta, pois naquele momento chegava a carruagem real.

Trecho de O Barba Azul

A princípio não viu coisa alguma, porque as janelas se achavam fechadas; momentos depois começou a notar que o assoalho estava todo coberto de sangue coalhado, no qual se espelhavam os corpos de várias mulheres mortas, presas ao longo das paredes (eram todas mulheres que Barba-Azul desposara e que havia estrangulado). Cuidou morrer de susto, e a chave do gabinete que acabava de retirar da fechadura, caiu-lhe da mão. Após haver recobrado um pouco o ânimo, apanhou a chave, fechou a porta e subiu ao quarto para refazer-se; não o conseguia, porém, devido à sua grande perturbação.
Tendo notado que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue não desaparecia; lavou-a, esfregou-a com sabão e pedra-pomes; debalde: o sangue ficava sempre, pois a chave era fada, e não havia meio de limpá-la inteiramente: quando se tirava o sangue de um lado, ele voltava do outro.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Contos de fadas despidos de lições

Em sua forma original, os contos de fadas traziam doses fortes de adultério, incesto, canibalismo e mortes hediondas. Originalmente concebidos como entretenimento para adultos, os contos de fadas eram contados em reuniões sociais, nas salas de fiar, nos campos e em outros ambientes onde os adultos se reuniam. Por isso, muitos dos primeiros contos de fada incluíam exibicionismo, estupro e voyeurismo.

Segundo Cashdan "a crença de que os contos de fada contêm lições pode ser, em parte, creditada a Perrault, cujas histórias vem acompanhadas de divertidas 'morais', muitas das quais inclusive rimadas".

Mas o autor se opõe: "os contos de fada possuem muitos atrativos, mas transmitir lições não é um deles".

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Irmãos Grimm

Em principio, na tradição oral, as histórias compiladas pelos estudiosos não eram destinadas ao público infantil e sim aos adultos. E isso, grande parte do público que acompanha o “Mundo” já sabe. Foram os irmãos Grimm que as dedicaram às crianças por sua tendência em trabalhar a temática mágica e maravilhosa. Eles acabaram unindo esses dois universos: o infantil e o popular e já no 1º título publicado pela dupla, Contos da Criança e do Lar (Kinder und Hausmärchen), de 1812, essa proposta educativa é evidenciada.

E essa abertura só foi possível e influenciada graças ao Romantismo da época que trouxe ao mundo literário (nesse caso, mas específico as narrativas fabulosas) um sentido mais humanístico, deixando de lado o enfoque na violência, tão presente nos contos de Charles Perrault. Sim, porque Perrault visava passar lição de moral à sociedade e responder aos interesses da nobreza através de suas obras, até que começa a perceber que a concorrência cede lugar ao lado maravilhoso da vida nos escritos daquele período.

Pelos irmãos Grimm as histórias passaram a conter desfechos mais suaves, evidenciando a solidariedade e o amor ao próximo. Não que os aspectos negativos tenham se extinguido por completo, não é isso! Eles continuavam presentes nesses contos, porém, existia um predomínio da esperança e a confiança na vida bem mais forte.

Por Cládio Brasil.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O efeito da fantasia na vida prática

Investigações recentes sobre o sonho mostram que uma pessoa impedida de sonhar, mesmo que não seja privada de dormir, fica prejudicada na habilidade de lidar com a realidade; torna-se perturbada emocionalmente porque não é capaz de elaborar nos sonhos os problemas inconscientes que a bloqueiam. Talvez algum dia sejamos capazes de demonstrar o mesmo fato experimentalmente em relação aos contos de fadas: que as crianças vão mal de vida quando são privadas do que as histórias podem lhes oferecer, dado que os contos ajudam-na a elaborar, na fantasia, as pressões inconscientes.

Mitos versus Contos de Fadas

Tanto os mitos como as estórias de fadas respondem a questões eternas: O que é realmente o mundo? Como viver minha vida nele? Como posso realmente ser eu mesmo? As respostas dadas pelos mitos são taxativas, enquanto o conto de fadas é sugestivo; suas mensagens podem implicar soluções, mas nunca as soletra.

Sentimentos Engarrafados

Enquanto o gênio ficou confinado na garrafa durante os primeiros cem anos ele "disse de coração: Aquele que me libertar, eu o enriquecerei para sempre. Mas passou-se o século inteiro, e quando ninguém me libertou, eu entrei pelos segundos cem anos dizendo: Àquele que me soltar, eu abrirei os tesouros ocultos da terra. Ainda assim ninguém me libertou, e passaram-se quatrocentos anos. Então, disse eu: Àquele que me soltar, eu satisfarei três desejos. Mesmo assim ninguém me libertou. Em conseqüência encerrei-me em cólera, e com excessiva ira disse para mim mesmo: Aquele que me soltar, daqui para diante, eu o matarei..."

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